Coluninha | Por Lizandra Magon de Almeida.
Quando eu estava na sexta série, hoje sétimo ano do Ensino Fundamental, minha professora de inglês afirmou que quanto mais línguas você aprendia, mas fácil se tornava aprender uma nova língua. Na hora, aquilo me pareceu completamente absurdo. Eu estudava inglês na escola, daquele jeito maçante e pouco criativo de sempre, e não entendia a razão. “Ué, mas se essa língua que estou estudando é totalmente diferente do português, cada língua é uma língua e pronto. Vai ser sempre difícil”, concluí.
Nunca fui de deixar barato, então logo me pronunciei. “Não concordo, professora. Cada língua é totalmente diferente da outra.” O caso não era exatamente uma questão de opinião, certo? Então, era preciso ir um pouco além da afirmação e explicar sobre as origens comuns das línguas, por exemplo. A professora também poderia ter lembrado que as pessoas sempre andaram pelo mundo, semeando palavras de suas línguas por aí. E muitas vezes essas palavras novas conseguem dar conta de algo que a língua local ainda não dava. Não é à toa que hoje usamos tantas palavras em inglês para falar de tecnologia, por exemplo. Também ajudava se ela tivesse dado alguns exemplos de palavras do português que hoje fazem parte de línguas completamente diferentes. Por exemplo, pão, em japonês, é pan – os portugueses passaram por ali na época das Grandes Navegações e deixaram essa e outras palavras para os nossos irmãos do outro lado do mundo.
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Mas ela não explicou nada. Acho que não gostou do comentário, e simplesmente insistiu: “É assim, sim”. Fim de papo. Nunca aceitei esse tipo de resposta e fiquei engasgada com isso por muito tempo. Marina Miyazaki, autora do nosso livro Dislexicando, diria que essa professora tinha algum distúrbio de ensinagem (para ela, não são só as crianças que têm distúrbio de aprendizagem; muitas vezes, o problema é o distúrbio de ensinagem do professor…).
Sempre com essa pulga atrás da orelha, continuei estudando inglês e quando estava na faculdade comecei a estudar espanhol. Parte da minha família é de origem italiana, então também conhecia algumas palavras dessa língua. E comecei a assistir filmes franceses, alemães… Fui percebendo as semelhanças e as peculiaridades de cada idioma e pensava: “É tão óbvio! Se ao menos aquela professora tivesse me explicado melhor!”. Claro, mesmo parecendo totalmente diferentes, a mistura entre as línguas é inevitável. E muitas línguas têm origem indo-europeia, o que significa que o português e o hindu, por exemplo, vieram do mesmo lugar. Pode imaginar?
Por mais que hoje estejam todas muito bem registradinhas em suas gramáticas e dicionários, a língua nunca cabe em si. Em nossa ânsia de nos fazer entender, estamos sempre mudando e inventando palavras, ou nos apropriando de palavras de línguas estrangeiras. O mesmo idioma tem palavras diferentes conforme o país, assim como usos diferentes para a mesma palavra. Dentro do mesmo país, em ambientes diferentes, a língua também se adapta e é recriada para que as pessoas possam expressar o que sentem, pensam, imaginam…
O mesmo acontece ao longo do tempo. Na crônica “Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade brinca com as expressões que caíram em desuso (algumas nem tanto…) e escreve o texto todo só com elas. Olha só o que ele diz:
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica.
Se você não entendeu nada do que diz Drummond, não tem problema. Hoje é muito fácil pesquisar e descobrir os significados dessas expressões. É até um jogo divertido tentar adivinhar o que será que ele quer dizer. A língua é viva e incontrolável, é uma verdadeira Emília, cheia de vontades e quereres. E só a literatura consegue nos fazer voltar no tempo e viajar por mundos e culturas sem precisar de nenhuma tecnologia de ponta.
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Lizandra Magon de Almeida é jornalista, tradutora de profissão e proprietária da Pólen Livros, que edita livros infantis e voltados a questões do universo feminino.