Tradução de livros para crianças quais os segredos e desafios

Tradução de livros para crianças: quais os segredos e desafios?

A tradução de livros para crianças e jovens é um dos meus maiores prazeres profissionais. Sempre que recebo uma proposta, já fico animada pensando na aventura que está por vir. E não falo apenas da narrativa. É que traduzir para esse público pode parecer trivial, mas não é nem um pouco. Dentro do universo da tradução, muitas pessoas subestimam quem traduz textos que consideram, se não mais fáceis, ao menos mais simples. Mas é exatamente aí que se situa a complexidade desse segmento: quanto mais o texto parece simples, maior nosso desafio em transpor essa simplicidade de uma língua para a outra. Algum tradutor já disse isso, e concordo absolutamente com ele: é difícil traduzir de um jeito que faça o texto parecer fácil.

Quer saber mais sobre esse processo? Vem comigo que te conto!

Como é, então, traduzir livros para crianças?

Quando recebi o convite da Leiturinha para traduzir Olga e o grito da floresta (Olga et le cri de la forêt no original), escrito pela Laure Monloubou, fui fazer minha pesquisa de sempre: saber quem é a autora, que outros livros ela já escreveu, se também é ilustradora, além de pesquisar um pouco sobre o livro em si, mas sem partir para a leitura integral dele, como de praxe. 

Muitas pessoas ficam surpresas quando digo que não leio antes os livros que vou traduzir. É que, na verdade, eu gosto muito de descobrir a história com o meu processo de tradução, porque assim tenho a sensação de também estar escrevendo uma história inédita conforme vou, aos poucos, desvendando o perfil de cada personagem, e isso também me permite ver a trama se desenrolar diante dos meus olhos, e na minha língua materna!

Você pode me perguntar se não há casos em que deixo escapar alguma coisa que só acabei descobrindo mais adiante na narrativa, e eu respondo que sim – e foi justamente o que aconteceu quando traduzi Olga e o grito da floresta

Olga e o grito da floresta

Se você já leu esse livro, sabe que Olga tem uma característica que vai determinar sua trajetória ao longo da narrativa. Se não leu, prepare-se para fazer uma linda descoberta ali quase na metade da história, que vai fazer você ficar tão surpreso e emocionado quanto eu fiquei. É dessa sensação que eu gosto. E quando isso acontece e preciso repensar alguma escolha que tinha feito lá no começo da minha tradução, não tem problema nenhum: eu SEMPRE releio a tradução inteirinha antes de considerar que meu trabalho está terminado. Isso me permite encontrar erros de digitação, escolher termos mais adequados à história, e até alterar um parágrafo inteiro que acabaria revelando uma informação fundamental antes da hora, caso eu o escrevesse deste ou daquele jeito. 

Os segredos da tradução de livros para crianças

Outra coisa muito importante, mas que nem todo mundo sabe, é que o tradutor nunca trabalha sozinho. Durante a tradução de um livro, podemos consultar dicionários, enciclopédias, sites; podemos tirar dúvidas com colegas, com especialistas, com o próprio autor, se ele for contemporâneo; e, quando entregamos a tradução para a editora, podemos trocar figurinhas com os profissionais que vão mexer no nosso texto depois – o editor, o revisor, o preparador, que estão lá para deixar o livro ainda melhor. E essas trocas são importantíssimas, porque todos trabalham juntos no mesmo material, e com um objetivo comum: oferecer ao leitor daquela história a melhor experiência de leitura possível, para que ele fique tão encantando com a narrativa como ficou o leitor do texto original. 

Em termos práticos, costumo fazer o seguinte: vou traduzindo a história e incluindo comentários sobre escolhas que fiz e considero importante dividir com o editor, como, por exemplo, os nomes dos personagens, já que nas histórias infantojuvenis muitas vezes fazemos o que se chama, dentro da teoria da tradução, de domesticação, ou seja, uma adaptação da linguagem à realidade do público local (em oposição à estrangeirização, que tem o objetivo contrário, ou seja, de manter muitas coisas como no original, para o leitor fazer o exercício de se deslocar até a língua estrangeira). Contudo, é preciso tomar cuidado para que essa domesticação não seja excessiva, e para que tenhamos um equilíbrio entre um e outro conceito, pois é muito interessante convidar o leitor brasileiro a navegar por histórias que acontecem em espaços e tempos bastante diferentes do que ele está habituado. Afinal, essa não é uma das grandes riquezas da literatura?

E os desafios?

Em Olga e o grito da floresta, escolhi adaptar os nomes de quase todos os personagens. O gato se chama Monsieur no original, e fiz a escolha por Milorde na versão em português. E essa decisão não foi aleatória. Conforme fui lendo a história, percebi que Milorde é um gato bastante pomposo – como a maioria desses bichinhos charmosos, não é mesmo? – e, por isso, merecia um nome à altura. Como a palavra monsieur é um pronome de tratamento formal em francês, pensei que dar a ele o nome que corresponde a alguém com aparência de rico, elegante e de boas maneiras (de acordo, inclusive, com a definição do dicionário Houaiss) viria a calhar. Já o nome da mãe da Olga seguiu um caminho diferente. Ela se chama Fedora, tanto no original como na tradução que fiz para o português. E minha escolha também não foi casual. Alguns detalhes da história dão a entender que Fedora é russa, portanto, um nome pouco habitual em português também lhe cairia bem. Foi então que optei por apenas excluir o acento que o nome leva em francês – Fédora – e deixá-lo igual em português. 

Outro aspecto interessante, é entender quem é o narrador do texto. Isso pode determinar a escolha do vocabulário, por exemplo. O livro Olga e o grito da floresta é narrado em terceira pessoa. Eu, como tradutora, posso imaginar quem é o narrador dessa história, partindo da relação que ele estabelece com a narrativa que está contando: é possível perceber, por exemplo, se ele é um narrador distante da protagonista ou se, ao contrário, ele é bastante próximo dela a ponto de conhecer detalhes que outras pessoas talvez não saibam. E isso dá o tom da minha escrita. Se a narração fosse em primeira pessoa e a voz do texto viesse de Olga, uma garotinha muito esperta, mas de apenas oito anos, a linguagem precisaria se adequar à voz dela.

Como você pode perceber, a tradução de livros para crianças (e toda e qualquer tradução, na verdade) vai muito além da transposição de palavras de uma língua para a outra. O tradutor é uma espécie de investigador que precisa ficar atento a todos os detalhes e a todas as pistas que o texto lhe fornece. Ele também está o tempo todo fazendo escolhas e partindo de sua própria leitura da história para imprimir nela suas pequenas marcas, que por sua vez ficarão impressas na memória do leitor. 
É ou não é um trabalho incrível traduzir livros? 😊

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